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Direitos dos animais: quais são e por que eles precisam ser defendidos


A ciência já provou que eles são capazes de sentir, pensar e perceber. Agora ativistas lutam para que a lei reconheça que eles têm direitos assim como nós

Por Nyle Ferrari
Manifestação da Animal Equality em homenagem ao Dia Internacional dos Direitos Animais (Fotografia: Paula Jacob)

Depois de serem transportados por penosas horas de caminhão, milhares de bois são armazenados em um navio, amontoados em um espaço minúsculo que não permite que eles descansem. Em contato com as próprias fezes e urina, sujeitos a pouca comida e ao estresse, muitos animais ficam doentes e chegam a morrer no trajeto até o país de destino. Então um equipamento dentro do navio tritura esses animais mortos e joga no mar, assim como acontece com os inacabáveis dejetos que os bois produzem. Os que não morrem no caminho, morrem no destino ao serem abatidos para virar comida.

Em 7 de fevereiro de 2018, a Justiça Federal proibiu o embarque 27 mil animais vivos que sairiam do porto de Santos, no litoral de São Paulo, para a Turquia. A Ação Civil contra a crueldade descrita acima se deu graças à união de advogados ativistas da ABRAA (Associação Brasileira de Advogados e Advogadas Animalistas) e de jornalistas da Anda (Agência de Notícias de Direitos Animais).

Após um vai-e-vem judicial, os animais foram embarcados e a lei que proibiu o transporte de cargas vivas na cidade de Santos foi suspensa. O desfecho é negativo para a causa, mas o episódio se tornou histórico para o direito animal. “Essa batalha está sendo importante porque empoderou os ativistas, uniu as ONGs e, principalmente, colocou em discussão a exploração dos animais na indústria pecuária. Esse caso fez os juízes decidirem a favor dos animais e acabou educando pessoas que nunca tinham ouvido falar em abolicionismo animal”, conta a advogada e vice-presidente da ABRAA Letícia Filpi, que ajudou a redigir a Ação Civil contra o embarque.

O trabalho dos advogados ABRAA se une ao de dezenas de juízes, promotores e pesquisadores dentro e fora do Brasil que lutam pelo chamado direitos dos animais, cujo dia internacional é comemorado hoje, 10 de dezembro. Com o apoio de ativistas e organizações, eles lutam para que os animais não-humanos, capazes de pensar e sentir, tenham seus direitos à vida e à dignidade reconhecidos pela lei.

Os animais como “coisas”

A ideia de que os animais estão a serviço da nossa espécie tem início há cerca de 12 mil anos, quando os humanos começaram a domesticar e usar bichos para comer e se vestir. Mas foi no Império Romano que eles adquiriram status de “coisa” por meio da lei, conceito jurídico que dura até hoje.

Ao longo da história vários pensadores reforçaram a noção de que animais são propriedade humana, não têm consciência e nem são capazes de sentir ou pensar. Em IV a.C na Grécia, Aristóteles dizia que animais são irracionais e por isso não têm interesse próprio, existindo apenas para benefício dos humanos. No século XVII, o francês René Descartes foi responsável por consolidar o uso de animais para experimentos científicos. Segundo Descartes, os bichos não eram dotados de razão, sendo apenas corpos mecânicos cujos gritos de dor nada mais seriam do que barulhos de engrenagens.

As bases filosóficas do direito animal começam por volta do século XVIII com teóricos como Humphry Primatt e Jeremy Bentham, que contribuíram para construir a ideia de que os animais não pertencem aos humanos e além disso pensam e sentem — é a chamada “senciência”, capacidade que mais tarde seria comprovada pelos cientistas.

A origem do direito animal

Em 1776, o teólogo inglês Humphry Primatt lança o livro Dissertação sobre o dever de compaixão e o pecado da crueldade contra os animais brutos. Nela, Primatt defende que devemos ser coerentes ao considerar a dor e o sofrimento de animais humanos e não-humanos.

Mais tarde, em 1789, o filósofo Jeremy Bentham retoma as ideias de Humphry Primatt em seu livro Uma introdução aos princípios das morais e da legislação. Bentham defende que os humanos devem aplicar o princípio da igualdade na consideração moral a todos os seres dotados de sensibilidade, capazes de sofrer. Os animais estavam incluídos nisso.

As ideias de Humphry Primatt serviram de base para importantes nomes do movimento de libertação animal, como Tom Regan, Richard D. Ryder e Peter Singer. O livro Libertação Animal deste último, lançado em 1975, é considerado um marco e vai ajudar a sustentar as bases éticas e filosóficas do movimento pelo direito legal dos animais à vida, à liberdade e à dignidade.

No Brasil, o direito animal tem a importante contribuição de nomes como Laerte Levai, Sônia Felipe e Daniel Braga Lourenço. Autor do livro Direito dos animais, Laerte Levai promoveu, enquanto promotor do Ministério Público do Estado de São Paulo, diversas ações civis públicas contra a exploração de animais como rodeios, circos, vaquejada, rinhas de galo, experimentação e matadouro, além de denunciar criminalmente aqueles que maltrataram ou torturaram animais, sobretudo cães, gatos, pássaros e cavalos.

Em sua obra Direito dos animais: fundamentação e novas perspectivas, o professor de direito da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) Daniel Braga Lourenço traz um histórico da exploração animal e faz um panorama completo da legislação brasileira sobre os direitos dos animais.

Doutora em filosofia moral e teoria política pela Universidade de Konstanz (Alemanha), Sônia Felipe se tornou uma importante voz no meio acadêmico ao alertar sobre os malefícios do leite e defender o fim da experimentação animal, além de escrever artigos sobre direitos dos animais e as questões éticas envolvidas na exploração deles.

As leis que defendem os animais — ou quase isso

Se os animais sentem e estão sujeitos a sofrer e serem privados de seus direitos pelos humanos, eles devem ser protegidos pela lei. É o que passaram a defender no século passado autores do direito como Gary L. Francione e Steven M. Wise, ideias que hoje inspiram e servem como base para o trabalho dos advogados que lutam pelo reconhecimento do direito animal.

O direito animal é definido como um conjunto de regras e princípios que estabelece os direitos fundamentais dos animais, que existem para seus fins próprios e devem ter seus direitos reconhecidos assim como os humanos. Devem ter o direito à liberdade, à vida, à integridade física protegidos já que eles são seres sencientes (capazes de sentir e perceber).

Manifestação da Animal Equality em homenagem ao Dia Internacional dos Direitos Animais (fotografia: Alfredo Brant)

Em 1978, a Declaração Universal dos Direitos Animais proclamada pela UNESCO representou um avanço para o direito animal ao legitimar algumas dessas ideias. Mas é criticada por ativistas por dizer que os “animais destinados ao abate devem sê-lo sem sofrer ansiedade nem dor”, o que na prática permite a violação de um direito básico deles: o direito à vida.

No Brasil, a crueldade contra animais passa a ser condenada no artigo 225 da Constituição de 1988. “É a partir desse artigo que começamos a ter condições de separar o direito animal do direito ambiental, o que é algo muito importante”, explica o juiz federal paranaense Vicente de Paula Ataíde Junior. “O artigo 225 admite a senciência animal porque você só pode ser cruel com quem sente. Isso é o nascedouro do direito animal no Brasil”, complementa a advogada Letícia Filpi, da ABRAA.

Dez anos depois, a Lei de Crimes Ambientais (Lei nº 9.605/98) traz um novo avanço ao criminalizar o ato de abusar, maltratar, ferir ou mutilar animais — não importa a espécie. Nas cidades e nos estados, algumas leis locais contribuem para criar brechas jurídicas que podem ser usadas pelos ativistas. Uma das mais importantes foi a Lei 1140, promulgada em outubro deste ano no estado da Paraíba, que estabelece um código de direito e bem-estar animal. O texto diz que os animais são seres sencientes e nascem iguais e que devem ter as suas existências física e psíquica respeitadas, entre outras garantias.

Apesar das conquistas, a legislação animal no Brasil é frágil e os advogados animalistas têm lutado pela existência de leis específicas e de alcance nacional que tratem os animais como sujeitos de direitos. Daí a importância de abrir brechas legais através de decisões favoráveis na Justiça.

“O direito animalista está sendo construído aos poucos. O que a gente faz é um malabarismo para conseguir uma interpretação da lei que seja favorável aos animais”, explica Letícia. “O que temos é uma legislação de bem-estar animal, protetiva dentro da exploração humana, não abolicionista. O trabalho do jurista e do advogado é realmente convencer de que essas normas de bem-estar não trazem efetivamente bem-estar para um ser senciente pois ele está sendo tratado como coisa. A única coisa que melhora a situação dos animais, de um ser que sente, é reconhecer que ele é livre.”

Para o advogado Mauro Cerri, também integrante da ABRAA, outro problema é que as penas para os maus-tratos aos animais são brandas, variando de 3 meses a um ano. Ele reforça a necessidade de uma legislação específica que reconheça os direitos dos animais. “É difícil falar em direitos dos animais com uma legislação que regula como os animais devem ser explorados. Na verdade, o direito deveria dizer que esses animais não podem ser utilizados.”

Ex-presidente de comissões de direito e proteção animal da Ordem dos Advogados do Brasil de Rio Claro e de São Paulo, Mauro também destaca a importância da entidade e da atuação da OAB. “O principal papel dessas comissões é cobrar políticas públicas de proteção aos animais desde penas mais severas até questão de controle de população de cães e gatos, a questão das carroças, animais em zoológicos”, diz. “As autoridades, sejam do Legislativo, Executivo, Judiciário, bem como as polícias, começaram a enxergar o movimento de defesa animal de uma outra forma pela credibilidade da instituição.”

Outro órgão público que vem contribuindo para a luta pelos direitos animais é o Ministério Público. Seja na esfera estadual ou federal, o MP tem o papel de receber e apurar denúncias envolvendo animais e quando necessário realizar acordos com quem infringe a lei. Também contribui para a realização de políticas públicas em defesa dos direitos dos animais, como defesa dos animais de tração, fiscalização de matadouros e até projetos relacionados à causa.

Programa Escola Sustentável

Um deles é o Programa Escola Sustentável, de iniciativa da ONG HSI representada por sua gerente de políticas alimentares, Sandra Lopes, em parceria com o Ministério Público da Bahia encabeçada pela promotora Letícia Baird. O Programa pretende melhorar a qualidade da merenda dos alunos implementando a alimentação totalmente à base de vegetais, melhorando a saúde dos alunos, preservando recursos ambientais e salvando animais.

“O Escola Sustentável debate direitos humanos, meio ambiente e direitos dos animais — assim, muito além de poupar vidas de animais que seriam mortos para fins de alimentação, o Programa busca promover a educação humanitária e ética — alicerce fundamental para a construção de uma sociedade livre, justa e solidária”, explica Letícia Baird, que através do MP já conseguiu evitar a criação de um matadouro de jumentos em Serrinha (BA).

As ações judiciais importantes para o direito animal

Além da ação contra o embarque de animais vivos no porto de Santos, outras decisões judiciais dentro e fora do país se tornaram históricas para o direito animal. Em 1997, o Supremo Tribunal Federal (STF) proibiu a tradicional farra do boi em Santa Catarina por ser considerada cruel. A prática consiste em perturbar o animal e fazer com que ele corra atrás das pessoas, que agridem o boi com golpes e objetos. O evento só acaba quando o bicho já está exausto e machucado a ponto de não conseguir mais se levantar — o que muitas vezes leva ao sacrifício.

Em 2011, o Supremo considerou inconstitucional uma lei estadual carioca que autorizava e regulamentava as chamadas rinhas de galo, competição em que os donos dos animais colocam os bichos para se agredir. Ao final, um dos humanos saía vencedor e os animais, gravemente feridos. Cinco anos depois, a Suprema Corte também consideraria cruel e ilegal uma lei do Ceará que tentava regulamentar a vaquejada no Brasil.

Segundo o juiz Vicente de Paula Ataíde Júnior, apesar de mais tarde uma emenda constitucional ter ido contra a decisão do STF, o julgamento da vaquejada foi especialmente importante pelo voto do ministro Celso Barroso. O decano declarou que o sofrimento animal importa por si só e que a proteção da Constituição aos animais independe do direito ambiental. “Se o direito animal nasce com a constituição de 1988, ela se consolida com este julgamento”, conta Vicente.

Fizeram história também o caso dos 16 cães libertados de um laboratório de experimentação animal em Viçosa (MG), onde os animais tinham tendões cortados e outras atrocidades. Em agosto deste ano, a ABRAA conseguiu, através de uma ação cautelar, suspender o leilão de 35 bois resgatados de abandono e maus-tratos. A liminar foi derrubada, mas o leilão não foi promovido e o caso está em fase de recurso.

Em fevereiro deste ano, a paulistana Dalva Lina foi condenada a 16 anos de prisão pela morte de mais de 37 cães e gatos. O julgamento foi considerado emblemático por ser uma das maiores penas já aplicadas por maus-tratos aos animai no mundo.

Na Argentina, a Associação de Funcionários e Advogados pelos Direitos dos Animais (Afada) conseguiu um habeas corpus para a chimpanzé Cecília dizendo que as condições em cativeiro eram inadequadas. Ela era a única sobrevivente de um grupo de chimpanzés que vivia no Zoo de Mendoza, no oeste do país, e ficou depressiva após a morte de dois companheiros.

Na decisão, a juíza Maria Alejandra Maurício reconheceu que Cecília tinha direitos não-humanos. “Não se trata de outorgar aos animais os direitos dos seres humanos, mas de aceitar e entender de uma vez que eles são seres sencientes. Não são os animais, nem os grandes primatas objeto de exposição como obra de arte criada pelo homem”, sentenciou a magistrada. Cecília foi trazida para o Santuário de Grandes Primatas de Sorocaba, no interior de São Paulo.

A roda não vai parar

O direito reflete as mudanças da sociedade. Apesar da legislação animal no país ser incipiente, o crescimento do veganismo e a luta constante dos ativistas da causa animal, principalmente para pressionar o poder público nas batalhas judiciais, ajudam a transformar essa realidade. “O veganismo é uma roda que começou a girar e não vai parar. A sociedade está cada vez mais consciente e isso faz o movimento ganhar força”, reflete Letícia Filpi.

A advogada dá algumas dicas para profissionais do direito que querem se engajar na defesa dos direitos animais. “O primeiro é adotar o veganismo como estilo de vida. Se o advogado defende que todas as espécies são iguais em direitos e que nenhuma é superior à outra, não faz sentido escrever esse argumento e continuar explorando as outras espécies de animais”, ela diz.

Letícia também recomenda que os profissionais busquem fazer pós-graduação ou cursos de direito ambiental, ainda muito usado para defender os animais. Saber trabalhar sob pressão e se dedicar é importante. “Temos que tomar decisões estratégicas com o animal correndo risco de morrer ou ser gravemente ferido. E estamos defendendo clientes que não nos pagam, portanto muitas vezes a jornada terá que ser dupla”, diz. “Mas em troca conseguimos a liberdade de seres que não têm outro meio de se defender. Estamos prestando um serviço a eles e à sociedade. Eles precisam de nós.



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