6 Motivos para o Senado não aprovar o PL do Autocontrole
O PL 1.293/2021, que ficou conhecido como PL do Autocontrole, foi apresentado em abril de 2021 pelo Ministério da Agricultura, Pecuária e Meio Ambiente (MAPA) na Câmara dos Deputados. Este projeto de lei propõe o fim da fiscalização agropecuária obrigatória na indústria de alimentos e delega às próprias empresas a responsabilidade de seguir as normas e diretrizes do MAPA. Na prática, as empresas poderão contratar fiscais privados para supervisionar sua operação e verificar a adesão às normas.
Se for aprovado, esse PL tem potencial para causar impacto negativo em diversos setores da sociedade, entre eles a saúde pública, a saúde dos trabalhadores da indústria de alimentos e, inclusive, prejudicar os direitos dos consumidores que ficarão sujeitos a fraudes e falsificações de ingredientes e produtos na indústria de alimentos. Em outras palavras, caberá ao consumidor final confiar no que as empresas declaram ao MAPA para saber se os alimentos são de boa qualidade ou não, pois fiscais privados não possuem o poder de polícia que os funcionários públicos possuem para multar empresas e confiscar mercadorias.
Devido aos prejuízos que o PL do Autocontrole poderá causar, a Animal Equality, o Sindicato Nacional dos Auditores Fiscais Federais Agropecuários e mais de 30 outras organizações da sociedade civil organizada estão promovendo um movimento de oposição à aprovação do PL do Autocontrole, pedindo aos Senadores que votem contra o PL. Juntos, enviamos aos Senadores três cartas diferentes pedindo a oportunidade de manifestar a perspectiva dos grupos que serão afetados, incluindo os animais. Estas cartas podem ser consultadas abaixo.
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Hoje iremos compartilhar os 6 motivos pelos quais o PL do Autocontrole não deve ser aprovado.
1) Beneficia apenas as grandes empresas de alimentos
Um dos principais argumentos utilizados pelos defensores do PL do Autocontrole é o de que sua aprovação irá ajudar a aumentar as exportações de alimentos. Isso acontece porque como a legislação atual estabelece a obrigatoriedade de fiscalização agropecuária em todas as cadeias de produção de alimentos e existe um número reduzido de fiscais, teoricamente, não haveria como aumentar a produção e, consequentemente, a exportação. Para resolver esse problema, os mentores desse projeto tiveram a ideia de acabar com a obrigatoriedade de fiscalização para produtos consumidos no mercado interno, argumentando que isso daria mais celeridade à produção de alimentos.
Segundo a afirmação da ex-Ministra do MAPA, Teresa Cristina, em entrevista ao site da Frente pela Agropecuária no dia 13/04/2021, o PL tem como objetivo “desburocratizar e facilitar a vida do empresariado sem perder a segurança que os temas sanitários precisam”. Na mesma reportagem, o Deputado Zé Mário (DEM-GO) afirmou:
“Fico muito feliz quando vejo uma matéria dessa chegando na Câmara dos Deputados. Este tema soa como música. Estamos dando um passo enorme. Isso tem que chegar nas propriedades rurais e precisamos mostrar a grandiosidade do agro brasileiro. Menos ficais e mais controle próprio, cumprindo todo o protocolo exigido.”
Realmente esse tema é de muito interesse para os produtores rurais e para grandes empresas produtoras de alimentos, pois serão os únicos beneficiados pelo PL do Autocontrole. Aliás, não é coincidência que os grandes defensores do PL do Autocontrole sejam também grandes produtores rurais, como a própria ex-ministra e o Deputado Zé Mário. Para os grandes empresários e grandes produtores rurais, o PL do Autocontrole dará a oportunidade de produzir sem nenhuma supervisão do Estado, pois a fiscalização deixará de existir.
2) O conceito de autocontrole é enganoso
Outro argumento utilizado pelos defensores deste PL é de que o poder de polícia do Estado não será prejudicado, pois a fiscalização agropecuária continuará sendo feita. Esta é uma forma de enganar as pessoas e convencê-las de que essa mudança não trará nenhum risco para suas vidas, pois na prática as empresas poderão contratar agentes privados para fiscalizar suas operações, mas também poderão realizar o “autocontrole” com seu próprio efetivo de funcionários. O termo autocontrole está sendo utilizado para substituir o termo fiscalização.
O autocontrole é um termo usado para programas e melhoria contínua, de qualidade, ou qualquer outro programa no qual as empresas queiram desenvolver padrões acima do mercado. Porém, programas de autocontrole não podem e nem devem substituir a fiscalização governamental. Primeiro porque nenhuma empresa ou produtor rural, por mais que saiba que sua operação tem falhas, irá reportá-las voluntariamente ao MAPA. A ação dos fiscais agropecuários ficará restrita à análise da documentação enviada pela própria empresa por um sistema que deverá ser disponibilizado após a publicação do PL. Entretanto, como diz o ditado “não basta ser honesto, tem que provar”. E para provar que está trabalhando corretamente, a mínima garantia que o setor pode dar aos consumidores é estar disposto a ser fiscalizado por fiscais que não tenham conflitos de interesses em relação à atividade de fiscalização, o que é o caso dos fiscais de carreira. O segundo é porque, ainda que as empresas contratem agentes privados para realizarem a atividade de fiscalização, dificilmente esses agentes terão poder e autonomia para intervir nas falhas, para descartar alimentos fora dos padrões de qualidade, e muito menos para multar as empresas que cometerem falhas.A indústria de alimentos não pode se autofiscalizar. Ao longo da última década assistimos diversos escândalos de fraudes envolvendo grandes marcas do setor de alimentos. Venda de carne imprópria para consumo humano, como foi visto na Operação a Carne é Fraca, uso de substâncias tóxicas ou cancerígenas como o formol no leite envolvendo grandes marcas, são apenas alguns dos exemplos pelos quais não podemos confiar que as próprias empresas reportem o cumprimento à legislação e às normas sem fiscalização governamental.
3) Os animais ficarão mais expostos à crueldade
Em 26 de junho de 2022 divulgamos uma investigação realizada em três abatedouros legalizados que mostrou o que acontece quando os funcionários sabem que não há fiscalização agropecuária supervisionando a operação. Nossos investigadores registraram animais recebendo eletrochoques, sendo arrastados por cordas e espancados, tendo o rabo torcido e sendo esquartejados enquanto ainda estavam conscientes. Em nosso relatório para a imprensa, nós expusemos de forma bastante detalhada e técnica as falhas cometidas por esses frigoríficos que, caso houvesse um fiscal presente, teriam resultado em multa da empresa e apreensão da carne. Essas práticas estão em desacordo com a Portaria n. 365/2021 do MAPA, que regulamenta o manejo pré-abate, o abate humanitário e os métodos de insensibilização, porém, sem fiscais para supervisionar e multar os frigoríficos que cometem essas irregularidades, eleas ficam impunes. De acordo com a ANFFA Sindical, nos últimos 20 anos houve uma drástica queda no número de Fiscais Federais Agropecuários que passou de um efetivo de 4.200 fiscais para 2.700. Além de atuar na verificação das normas de bem-estar animal, os fiscais também atuam na verificação da qualidade dos alimentos produzidos, atuando na prevenção de doenças que podem afetar Seres Humanos, principalmente zoonoses, como a tuberculose, toxoplasmose, brucelose e a salmonelose.
4) Combater os abatedouros clandestinos deveria ser a maior prioridade do MAPA
Pouca gente sabe, mas existe um percentual muito alto de matadouros clandestinos onde nenhuma norma de abate humanitário é seguida e a morte de animais é precedida das piores práticas de abuso e violência que podemos imaginar. Embora os números não sejam fáceis de serem apurados, de acordo com o Economista da UFRJ João Felipe Mathias, que publicou o estudo A Clandestinidade na Produção de Carne Bovina no Brasil na Revista de Política Agrícola, os especialistas do setor apontam uma clandestinidade entre 30 % a 50 % no setor, mas os cenários construídos a partir do modelo proposto por ele levam a resultados em torno de 40%. Nesses locais, as normas sanitárias também não são seguidas, o que coloca a população que consome a carne proveniente desses abatedouros em grande risco.
Portanto, é irracional discutir autocontrole quando ainda há problemas gravíssimos de saúde pública e de bem-estar animal para serem solucionados. Ao invés de diminuir o número de fiscais agropecuários, deveríamos discutir como aumentar o número de fiscais agropecuários para que possamos avançar em direção a práticas realmente adequadas à legislação e às normas que garantam o bem-estar dos animais.
5) A Redução do número de fiscais faz parte de um projeto planejado para beneficiar grandes produtores rurais
A indústria agropecuária é uma das mais subsidiadas do Brasil. Um levantamento publicado no relatório Do Pasto ao Prato: subsídios e pegada ambiental da carne bovina, publicado pelo Instituto Escolhas apurou que, apenas considerando a cadeia de carne bovina, foram concedidos R$123 bilhões entre 2008 e 2017 em subsídios aos grandes produtores rurais, o equivalente a cerca de R$ 12,3 bilhões por ano. Esses subsídios ocorreram na forma de incentivos, créditos rurais, renúncias fiscais, impostos, anistias e perdões de dívidas. Então chega a ser um verdadeiro vexame que um setor altamente beneficiado pelos impostos públicos, dinheiro proveniente dos cidadãos brasileiros, precise de mais incentivos para crescer e não queira nem mesmo ser inspecionado pelo Governo.
Outro argumento utilizado para embasar o PL do Autocontrole é o direito à liberdade econômica. Entretanto, nenhum setor econômico está dispensado de seguir as leis, sendo a Constituição Federal a carta magna que embasa toda legislação. Esse argumento se contradiz com o ímpeto cada vez maior do setor de obter benefícios do Estado. Outro exemplo de que o setor sabe muito bem explorar sua proximidade com o Estado quando interessa é o perdão das multas ambientais. Um levantamento feito pelo site De Olho nos Ruralistas identificou que apenas 1% das multas por desmatamento nos últimos 25 anos foram pagas. Desde o ano de 1995, o Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama) aplicou R$ 34,8 bilhões em multas por desmatamento em todo o Brasil. Na média, apenas 1,4% desse valor – ou seja, R$492 milhões – foi efetivamente pago. O restante está sendo discutido na justiça ou caducou. Entre os diversos motivos pelos quais as multas caducam estão as infindáveis apelações e recursos apresentados pelos fazendeiros ao IBAMA, além da influência de autoridades públicas que, na verdade, representam o interesse dos grandes proprietários rurais.
De acordo com o Portal da Transparência, disponibilizado pelo Governo Federal, desde 2015, o orçamento do Governo Federal para a defesa agropecuária vem sofrendo cortes e passou de R$ 91.858.392,00 para R$ 2.552.888,23 em 2022, uma redução de 98% em apenas 7 anos, sendo que a maior redução aconteceu de 2017 para 2018, quando o orçamento passou de R$ 119.773.826,59 para R$ 15.867.111,17. Considerando que o total de multas caducadas, concluímos que o problema não é falta de dinheiro para inspecionar a indústria da carne, mas justamente o contrário, estamos diante de um projeto deliberado para beneficiar grandes produtores rurais que combina aumento de subsídios, diminuição do orçamento e flexibilização das leis para dar total liberdade.
6) O PL cria disparidades sanitárias e de bem-estar animal entre a carne produzida para exportação e a carne produzida para o mercado interno
Caso o PL seja aprovado e sancionado, a fiscalização federal agropecuária ficará concentrada nas plantas das empresas exportadoras, pois países que exportam carne do Brasil, como por exemplo, o Reino Unido e países da União Europeia, exigem a fiscalização governamental obrigatória. Isso significa que os animais terão tratamento distintos e os que são destinados ao mercado interno poderão ter um fim mais cruel. Se a fiscalização governamental isenta e com poder de polícia não fosse fundamental para que as normas sanitárias e de bem-estar animal sejam cumpridas, por que esses países a exigiriam? Não se trata apenas de uma mera imposição de barreira comercial, mas sim de uma exigência alinhada às normas sanitárias e de bem-estar animal mais rígidas, em consonância com o que também é exigido pelos consumidores de carne nesses países. Cabe lembrar que na Europa e no Reino Unido, o movimento de proteção dos direitos dos animais está algumas décadas à frente do Brasil e da América Latina, onde estamos apenas iniciando um processo de conscientização de que os animais criados para consumo humano também são seres sencientes e, portanto, merecem ser protegidos da crueldade e respeitados.
Por todos os motivos listados acima, a Animal Equality se opõe firmemente à aprovação do PL do Autocontrole. Como, apesar das três cartas enviadas ao Senado, ainda não conseguimos ouvidos e ter a oportunidade de apresentar os impactos do PL para diversos setores da sociedade, estamos organizando um Ato Público que acontecerá no dia 15 de setembro, na Assembleia Legislativa do Estado de São Paulo. Assine a nossa newsletter e acompanhe nossas mídias sociais para saber todos os detalhes que serão divulgados em breve.